domingo, 26 de outubro de 2008

O futuro é uma astronave

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva

Se um pinguinho de tinta cai num pedacinho azul do papel
num instante imagino uma linda gaivota a voar no céu
Vai voando, contornando a imensa curva Norte e Sul

Vou com ela viajando Havaí,
Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela branco navegando,
é tanto céu e mar num beijo azul

Entre as nuvens vem surgindo um lindo avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo, com suas luzes a piscar
Basta imaginar e ele está partindo, sereno e lindo
e se a gente quiser ele vai pousar

Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida
com alguns bons amigos bebendo de bem com a vida
De uma América a outra consigo passar num segundo
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo

Um menino caminha e caminhando chega no muro
e ali logo em frente a esperar pela gente o futuro está
E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar

Não tem tempo nem piedade nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida,
depois convida a rir ou chorar

Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
de uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
(que descolorirá)
e com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
(que descolorirá)
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
(e descolorirá)

'Aquarela' - Vinicius de Moraes

sábado, 18 de outubro de 2008

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Presente

Tenho um urso de peluche castanho que vive no meu quarto e, às vezes, acompanha-me noutras andanças, espremido entre a bagagem necessária para voos longe de casa. Já não tenho idade para brincar com bonecos nem ele serve para brincadeiras. É tão somente o companheiro silencioso quando o barulho à volta me impede de pensar. Um monte de pêlos e ácaros que não reclama quando fica ensopado de lágrimas ou é atirado ao ar... porque vê-lo rodopiar aumenta a sensação dos dias felizes. É a cara conhecida nas noites solitárias de um quarto de hotel. O adorno que destoa da fachada. O segredo que é só meu. Quem me espera quando não há mais nada a esperar. Não há qualquer história fabulosa que explique a sua existência – a não ser o facto de ter chamado a atenção quando estava na prateleira de uma loja numa cidade distante - mas se ele tivesse o dom da palavra poderia contar quase todas as histórias da minha. Não falo com ele e a sua grande vantagem, desconfio, é nunca me perguntar nada. Certamente não compreende as curvas da vida mas, entre os de ‘carne e osso’, também são poucos os que julgam entendê-las. Hoje escrevo sobre ele porque descobri que, como diz a canção, não sou a única. Há por aí um grande urso branco intrometido em canções. O meu também sobreviveu às mudanças. De morada e de espírito. Vive conformado no seu fato fofo e rechonchudo, de onde despontam duas orelhas arredondadas. Sorte a dele. Eu sou inconformada por natureza e isso, às vezes, dói. Não sei porque me afeiçoei a ele, mas talvez seja porque está ali, presente. E só por isso ganhou direito a um nome: chama-se Rupert...